Documentário dirigido por Tetê Moraes relembra a proposta do jornal-escola carioca O SOL, que movimentou e acompanhou a efervescência cultural e política da geração de 68. Em entrevista exclusiva, Tetê revela que acredita que o sonho não acabou.
Carlos Gustavo Yoda Carta Maior
Em 1966, enquanto Ernesto Guevara de la Serna chegava à Bolívia, no Brasil, tentaram fixar três focos de resistência armada. Apenas um conseguiu caminhar, mas foi desarticulado em abril de 67, na Serra de Caparão, entre Minas Gerais e Espírito Santo. Os remanescentes dessa guerrilha, sob o nome de MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário) aproximaram-se de um grupo de artistas, jornalistas e intelectuais cariocas engajados na proposta de criar um jornal que funcionasse como uma escola de jornalismo.
Zuenir Ventura, Henfil, Ana Arruda e Reynaldo Jardim propuseram então ao dono do Jornal dos Sports um encarte semanal sobre política e cultura. A idéia foi para frente porque o proprietário do jornal foi convencido de que o leitor do Sports tinha de comprar outro jornal para se informar dos outros assuntos. Daquela maneira, bastava comprar apenas o Jornal dos Sports.
Reynaldo Jardim ficou encarregado de montar e comandar a equipe. E logo O SOL já brilhava com sua irreverência nas bancas de revista diariamente. Era um projeto político do MNR para atrair jovens e organizar uma nova guerrilha, mas muitos participantes dO SOL nem sabiam disso, explicou Jorge Pinheiro em depoimento recolhido do livro Jornalistas e Revolucionários, do professor Bernardo Kucinski.
Essa história não é contada em O SOL Caminhando Contra o Vento que estréia na sexta-feira (dia 11) nas telas de todo o Brasil. Mas o estudo registrado de Kucinski é essencial para compreender a importância desse jornal-escola carioca de vida curta. Foram apenas seis meses, mas o suficiente para sacudir a cena cultural da época e abrir espaço para a imprensa alternativa que ganhou mais força após o AI-5.
O documentário, dirigido por Tetê Moraes e com roteiro de Martha Alencar (ambas na foto ao lado de Gil), procura reviver os bastidores da redação de O SOL e a efervescência cultural e do movimento político de juventude da geração de 68. As questões sociais, o momento político, a liberdade ameaçada, a geração do protesto musical vendo A Banda passar. A Roda Viva. Foi na juventude que O SOL foi inspirado e, com isso, o jovem tornou-se segmento social. Talvez por isso Reynaldo Jardim dissera que Jovem é o sol, mesmo se é noite.
Com um elenco de entrevistas históricas como de Chico Buarque, Gilberto Gil, Zuenir Ventura, Fernando Gabeira, Ziraldo entre outros, SOL revela na própria experiência que o sonho não acabou, o sonho renova-se. Mas beira à nostalgia nos depoimentos de Arnaldo Jabor (nós éramos mais sonhadores, mas talvez mais babacas) e Caetano (é, o sonho acabou. John Lennon falou isso logo cedo. Mas isso não é uma má notícia necessariamente).
Logo o Caetano, que teria inspirado o documentário com os versos o sol na banca de revista / me enche de alegria / e preguiça / quem lê tanta notícia. Fato é que Caetano nega que tenha inspirado-se no jornal, mas toda a geração que fez parte daquele movimento jura que a canção Alegria, Alegria fazia alusão ao periódico. Mas é de conhecimento comum que Dedé namorava o compositor quando ela trabalhava nO SOL e Caetano era um assíduo freqüentador da redação e das reuniões nos bares da Lapa. A associação é inescapável, aponta Gil.
Carta Maior encontrou uma brechinha na agenda de Tetê Moraes, em São Paulo. Ela estava de passagem para fazer uma sessão a convidados para o filme e, entre uma e outra reunião com a equipe de divulgação, atendeu a reportagem. Meia-hora de conversa foi o suficiente para a diretora relembrar os tempos em que era diagramadora dO SOL, falar sobre a falta de perspectivas da juventude de hoje e dos sonhos que nunca acabam.
Carta Maior Tetê, de onde surgiu a idéia de fazer o documentário, foi devido ao seu trabalho em O SOL?
Tetê Moraes Eu era diagramadora de O SOL. Era uma equipe fantástica. Carlos Heitor Cony, Zuenir Ventura, Reynaldo Jardim. E eu fiquei trabalhando direto com o Reynaldo na diagramação. Eu tinha acabado de me formar em Direito e prestado concurso para trabalhar no Itamaraty, mas o que eu mais queria fazer era jornalismo. Ainda quando estudava Direito eu pensava no jornalismo. Mas havia poucas escolas de Comunicação e eu caí na vala comum da época. Mas eu queria escrever, ler, contar histórias. De repente, apareceu a idéia dO SOL de que estudantes poderiam participar. Eu até já conhecia o Reynaldo. A gente fazia uma revista no colégio e ele dava uma assessoria. Ele era diretor da Rádio do Jornal do Brasil e a gente ia lá ver como funcionava uma rádio. Devido a essa relação eu fui trabalhar direto com ele. Não era muito a minha praia, mas foi bom demais. Essa idéia de diagramação me ajudou muito até para a formação das idéias, de como se contar histórias nos filmes. Esse do negócio do corta aqui, joga pra lá. Serviu demais para isso, também. Naquela época eram aquelas réguas, paicas, máquinas de calcular. Foi uma experiência maravilhosa. Eu trabalhava no Itamaraty de manhã e à tarde ia para O SOL, na Lapa. Na época, o Itamaraty ficava no Rio de Janeiro ainda. Aí o filme veio da idéia de resgatar essa experiência. Terra Para Rose (1987) e O Sonho de Rose, Dez Anos Depois (2000), fizeram muito sucesso. Mas não era a minha realidade. Queria fazer algo que fosse mais próximo da minha realidade. Urbano, mulher, jornalista, cineasta, classe média. E O SOL foi o começo de tudo. Depois fui presa, solta, o exílio. Então foi realmente o início. Início de uma geração.
CM Sobre o roteiro, por que a idéia de utilizar como base uma festa reunindo o pessoal da época, da redação e do movimento cultural?
TM Eu queria fazer um filme que tivesse o clima dO SOL. Uma coisa bem movimentada, criativa e irreverente. Era uma confraria, tanto com quem trabalhava lá, quanto com quem vivia a vida do jornal na leitura, na colaboração e nos bares. E eu sempre pensei em utilizar a idéia de uma festa. Além do quê, seria a única forma de reunir tanta gente daquela turma. Deu um trabalhão, mas valeu a pena. Foi interessante ver todo mundo junto. Tivemos de pesquisar todo o acervo e descobrir onde é que estavam as pessoas do jornal. O próprio acervo é defasado. Não tem ninguém que tenha a coleção completa. Ele saía junto com o jornal dos Sports, mas tinha toda autonomia. Mas foi a partir da festa que buscamos as outras coisas. Uma coisa vai levando a outra. Foi isso o que Martha Alencar e eu procuramos fazer. Porque toda aquela turma estava envolvida com o projeto e os ideais dO SOL. Gilberto Gil estava sempre nas páginas do jornal. Caetano Veloso namorava com a Dedé na época. Ela até saiu do jornal quando casou com ele e foram morar em São Paulo. Caetano vivia lá com a gente. O Chico Buarque publicou charge e texto dele. Chico tinha uma ligação muito forte com O SOL.
CM Puxando para os dias de hoje. Há um questionamento meio nostálgico no filme dizendo que o sonho acabou, não acabou. O sonho acabou, Tetê?
TM Há muita esperança de busca de significado. Você pode estar fazendo da sua vida algo criativo, coerente, humano. Cada um do seu jeito procura a consciência de construir alguma coisa melhor. Esse sonho não acaba. Faz parte da própria vida, da própria existência humana. É como diz a Betty Faria no filme, também. Não tem mais ilusões. Não há mais aquela busca pelo que não é real. O que a gente vê
no filme é que praticamente todas as pessoas que a gente entrevistou estão ainda produzindo coisas novas, estão atuando, criando. Nesse sentido, o sonho não acabou. Mas também tem o que o Caetano disse: "Não é viver em nome de um sonho. É viver bem, com qualidade, ética". É o que eu penso.
CM Mas e a juventude de hoje, que é quem mais procura filmes como o seu? Essa juventude está perdida? Ela tem um ideal?
TM Não sei exatamente. Esse já seria objeto de um outro filme. Geralmente a gente entra para fazer um filme sabendo um pouco, ou quase nada, e sai dos filmes sabendo um pouquinho mais. Foi o caso dos filmes que eu fiz sobre os sem-terra. Eu entrei ali sem entender nada de reforma agrária. Mas é claro que na época dO SOL havia um inimigo muito claro que era a ditadura militar. Hoje em dia, as coisas são mais fragmentadas. As informações são tantas, o acesso é muito simples a tudo. É um universo tão imenso e parece que as pessoas ficam um tanto perdidas e perdem até a sua conexão com o real, com o humano, com o outro. A internet é maravilhosa, mas separa as pessoas. Tudo isso são novas questões que a juventude está aprendendo como lidar. Tem tanta coisa que tem de ser feita. Às vezes, as pessoas pensam que não adianta fazer nada, mas um pouquinho que você faz aqui já é alguma coisa. O que esperamos desse filme é que apenas minha geração possa dar algumas idéias. Não receita. Apenas algumas idéias. Só isso. É como diz o Zuenir Ventura: O importante é organizar-se e fazer. Não importa a forma, partidos, núcleos, ongs. O jovem precisa conectar-se e organizar-se em planos e idéias comuns. Não viver isolado, individualista.
CM E qual sua avaliação, já nessa reta final de mandato, da administração do Gil no Ministério da Cultura?
TM O Gil tem sido um excelente ministro. Está sempre presente e aberto a discutir todas as questões. Eu diria até que o Ministério da Cultura é um dos mais atuantes que temos nesse governo. Não tem nenhum escândalo de falta de ética. Os escândalos surgem quando o Gil fere o interesse de alguns poderosos apenas. É um Ministério exemplar para o governo Lula.
CM E os projetos novos? O que podemos esperar do vem por aí?
TM Eu estou trabalhando agora em um documentário sobre o escritor Antônio Callado. E estou pensando em um projeto com o João Donato, que já temos algumas coisas filmadas. Mas essa experiência de dirigir, produzir, distribuir, toma muito tempo. Por hora, estarei cuidando mais da divulgação de O SOL.
Fotos: Tetê Moraes, Gilberto Gil e Martha Alencar, em foto de Cristina Granato